29 outubro 2010

Os Inexistentes - Paulo e o Pênalti

Quando se tem nove, dez anos, as coisas parecem maiores do que realmente são. Um adulto olha e acha graça da importância de algumas coisas para as crianças, mas eles é que se esqueceram o quanto era bom ser criança e acreditar que aquilo que era importante. Aos dez anos Paulo estava de frente a um desses desafios que dividem águas, acontecimentos que não saem no jornal, mas que deveriam sair mais do que aquele tal de Plano Real que todo mundo falava e Paulo não entendia nada, mas serviria para um tal de FHC ganhar de um tal de Lula. O ano era 1994, Romário tinha unido a geração 80 e 90 numa inédita comemoração de Copa do Mundo e Paulo sabia que poderia fazer parte dessa conquista, bastando fazer o que tinha proposto. Pelo lado da turma 404, ele arrumando a bola na marca do pênalti. Pelo lado da turma 403, o menino mais alto da turma, fechando o gol. Obviamente, um repetente que o que sabia fazer de melhor era jogar bola. Era o último jogo do ano e a cobrança estava autorizada.

***

Paulo era o segundo melhor aluno da turma. Era bom em Matemática, ótimo em Estudos Sociais, razoalmente bem em Ciências e tinha um desempenho aceitável em Português. O melhor aluno era o melhor amigo de Paulo e era seu xará também. Esse outro Paulo, inclusive, era tão confiante e cheio de si que declarou que se um dia tirasse nota vermelha, se matava. Curioso ou não, esse mesmo menino 11 anos depois e já na faculdade tentou se matar ingerindo remédios, sem sucesso.

Mas Paulo, o nosso Paulo, tinha um ponto fraco: O Futebol. Não só o tal esporte bretão como todos os outros. Sua habilidade física se resumia a velocidade com que os seus dedos comandavam o Sonic e seu Mega Drive. seus chutes eram fracos e sem direção. Se batia de lado, a bola perdia força muito rápido. Se batia de bico, a bola perdia direção e nunca ia ao lugar certo. Sua falta de talento só não era maior porque era a 4ª Série, atual 5º ano, e o futebol não funcionava com regras muito convencionais.

Essa idade era a última antes da Educação Física ficar séria naquele colégio. Era o último jogo sem muitas regras. Só tinha linha de fundo: Se a bola batesse na arquibanca lateral, tá valendo. Os jogadores tinham que estar em números iguais para cada lado, e tá valendo se forem 7 contra 7, 11 contra 11 ou 13 contra 13. Substituições ilimitadas e sem parar o jogo. Toda a praticidade que só as crianças conseguem fazer. E era sempre o time da 403 contra o time da 404.

Ninguém ficava contando as vitórias de cada lado ao longo dos anos. Então esse era o último jogo, onde tudo se decidiria. Tudo o quê? Não sei, mas tudo se decidiria.

Paulo assistia muito Apito Final na Bandeirantes, e tinha visto uma entrevista com Marcelinho Carioca, que explicava que bater na bola precisava ser assim, assim e assim. Se for para bater forte, nem tanto com o bico, tente usar um pouco os três dedos e... e Paulo foi movimentando o pé de acordo com que o entrevistado falava. Não tinha uma bola pesada para treinar isso, mas numa bola de plástico viu que dava certo. Só que vivia num apartamento e não tinha como criar um gol para ver se a pontaria estava certa.

Paulo não era popular, bem longe disso. Mesmo no meio daquela zona, era nítido e notório sua falta de talento com os pés. Tinha apelidos feios e não conseguia falar com as garotas. Não desejava todas, mas desejava que todas o desejassem. Queria ser aceito e decidiu bater o pênalti. Imaginou que com a cobrança, a vitória no último jogo significaria a vitória no ano, a redenção.

No começo do jogo, Paulo usou de toda a retórica e argumentos existentes para dizer que era o cobrador oficial daquela partida: "Hoje eu que bato pênalti, pedi primeiro!". Uns riram, outros ignoraram. Começou a partida. Logo no primeiro chute, a bola foi isolada para o prédio das turmas mais novinhas e demorou a recomeçar. A partida estava mais dura que o normal, e Paulo se limitava a se postar na entrada da sua área e chutar para a frente (ou algo próximo disso) toda bola que vinha. Na frente, André, o craque da turma 404, tentava sem sucesso acertar um chute a gol. Numa cobrança de escanteio, Paulo foi a área adversária para tentar cabecear. A bola sobrou no alto para ele.

Paulo esticou a cabeça e... a bola subiu de novo em vez de ir para a frente, ficando fácil para as mãos do goleiro, o menino mais alto de todos. Mais um lance bizonho para um jogo que a turma 404 perdia por um gol. O último jogo do ano e eles estavam prestes a levar a derrota por todo o verão no hemisfério sul. Faltando 10 minutos para acabar a partida, André passou por um e cortou a bola para a direita na entrada da área. Chutou com toda a força que podia e a bola bateu no braço de um zagueiro afobato que se jogou na frente de qualquer maneira. Num jogo sem juiz, quando o outro time nem contesta o pênalti é porque não tem desculpa.

Uma bolo de garotos começou a discutir quem bateria o pênalti. Paulo pela primeira vez estava naquele bolo, gritando argumentos plausíveis e lógicos. "Eu pedi primeiro! Eu pedi primeiro!". E foi André, o craque do time, o primeiro a defender a cobrança de Paulo, para protesto geral. "Ele não! Está louco!". Aos poucos, foram aceitando, os primeiros a concordar eram os piores jogadores, junto com os mais sacaneados e zoados da turma. As crianças não tinham noção, mas aquilo era mais ou menos como um grito de basta, pelo fim da lei da Selva na 404. André olhou para os melhores jogadores e disse: "Todo mundo aqui já bateu um pênalti e o moleque não fez nenhum gol. Deixa ele ter a chance dele". E das mão do craque FIFA do ano (se a FIFA olhasse para aquele pacato colégio no Cachambi), Paulo recebeu a bola e arrumou na marca da cobrança.

Se lembrou do ano que teve, pais separados, brigas intermináveis, sendo acordado pela mãe bêbada de madrugada. E o pior, nenhum gol. Ninguém o abraçou, ninguém veio comemorar com ele algum mérito seu. Nem ser bom aluno servia, havia um melhor, que ele se sentia culpado de ter ciúmes, já que era seu melhor amigo. Não era nem perto de ser o mais bonito da turma e as meninas não sorriam para ele com medo de ouvirem que estavam apaixonadas por ele. Mas Paulo, por um breve instante nos momentos que antecederam a cobrança, era o garoto mais importante de toda 404, que é como se fosse um país naquele mundo-colégio.

Paulo olhou fixamente para o canto que queria bater e se lembrou dos chutes naquela bola de plástico bem mais leve do que a bola do colégio. Seria preciso bem mais força, mas será que ele conseguiria a força suficiente? Será que ele conseguiria a pontaria necessária? A cobrança foi autorizada, já que não havia juiz, mas havia os gritos de "vai!". E Paulo foi.

Nunca antes na vida dele a bola seguiu com tanta perfeição ao lugar que Paulo queria, e numa velocidade impressionante para os outros chutes de Paulo. Ele deixou o pé mais vertical possível, bateu com a parte de cima dos dedos e tinha mirado bem antes do chute. Paulo usou toda a técnica possível de chutar de um jogador profissional de futebol. Mas Paulo não sabia usar toda a malandragem de um jogador profissional de futebol.

O goleiro da turma 403, que era repetente e não sabia fazer outra coisa na vida a não ser jogar futebol, viu que Paulo olhava fixamente para um dos cantos, e não teve dúvida em pular nesse lado com os pés, jogando a bola para escanteio. Gritos de alegria da turma 403, e do lado da 404 Paulo conseguiu ouvir um "Eu sabia!". Ainda nesse escanteio, André pulou forte no segundo pau e fez de cabeça. Um a um e o jogo terminou assim, menos para Paulo, que perdeu de goleada.

Na volta para a sala de aula, para arrumar a mochila e ir embora, só voltando na segunda para a última semana de provas, ninguém falava com Paulo. De certa forma, muita gente queria o gol, e ficaram decepcionados com a não-realização do objetivo. Paulo olhou para o crucifixo no corredor daquele colégio religioso e perguntou "Por quê?". Não obteve resposta. Nunca obteve resposta. Arrumou sua coisas e saiu. Queria ser Romário, mas saiu do colégio com o mesmo semblante que Roberto Baggio deixou no Rose Bowl em Pasadena, 4 meses antes.

No ano seguinte, quando a aula de Educação Física passou a ser minimamente séria e os times eram montados na escolha de dois capitães, Paulo sempre era o último a ser escolhido.

4 comentários:

Rodrigo disse...

um tapa na cara de muita gente (y)

Anônimo disse...

Paulo dá aqui um abraço! \o/ vai passar, vc vai ver, vc vai crescer e vai ser um cara legal, inteligente e as mulheres vão se apaixonar por vc e vc vai ver que traumas de infância fazem parte do processo de crescer.

xoxo

Senhor F disse...

sei como é isso.
a cura pra um problema desses é óbvia: MUDAR DE AMBIENTE. e só.
mas isso vc já até deve saber

j. disse...

quando tinha por volta da idade de paulo, jogava bola bem, era razoavelmentebonito, fazia amizade com mais facilidade e era mais sociável.

então fui salvo pelo rock.

por volta do segundo grau, a dedicação ao futebol na educação física beira um profissionalismo utópico juvenil. é o espaço maior da afirmação do "nós" em cima do "resto".

foi então que os "rejeitados" (pelos mais diversos motivos) se uniram para fazer algo impensável: escracharam com aula, num nível de bater a audiência do wagner montes: comemoravam o 1x10 como se fosse título, faziam questão de chutar o mais longe possível do gol, o goleiro jogava sentado, outros passavam o jogo tirando o capim da lateral do gramado.

"nós" passava a aula inteira tentando agredir o time adversário, com consentimento, óbvio, do professor. mas o estrago já tava feito, a seriedade do futebol, definhada.

perdeu, playboy.